Como fazer um documentário sobre um cantor e compositor de 50 anos que, presumivelmente, ainda tem muita estrada pela frente? Rodrigo Pinto é o diretor do documentário Continuação, sobre Lenine, que encerrou o 14.º Cine PE. A sessão não poderia ter sido mais emocionante para o artista. Lenine estava em casa, no Recife, seus pais estavam na plateia e o cinema era o São Luiz. À tarde, ele dissera para o repórter que o cinema no centro do Recife tinha um significado especial em sua vida. Uma boa maneira de iniciar a conversa.
Luiz Carlos Merten para O Estado de S.Paulo
O que a Sala São Luiz representa para você?
É toda uma época da minha vida. No São Luiz eu frequentava as matinês da minha infância. Era o cinema em que eu ia com meus pais, em que assisti aos primeiros filmes. Tinha um monte de amigos crianças e o São Luiz era o ponto de encontro. Tudo muito barulhento, alegre, emocionante. As sessões, em geral, prosseguiam na Confeitaria Confiança e essa mistura de filmes e doces criou um sabor especial no meu imaginário. Voltar ao São Luiz é como voltar às origens, é um bom lugar para exibirem Continuação.
É um título estranho.
Mas o espectador o entende tão logo. Rodrigo (Pinto) explica que o número de documentários musicais no cinema brasileiro, hoje, aponta para uma vontade de biografar os artistas. Mas ele nunca quis fazer a minha biografia nem eu lhe pedi. O documentário surgiu em função do último CD, Labiata. Continuação é o título da última faixa, mas é algo mais. Rodrigo me acompanhou nas gravações, no Rio; foi a Londres para documentar a mixagem e me seguiu quando fui visitar meus pais, no Recife. A ideia era criar material para o DVD, pequenos vídeos promocionais ou, então, registros breves, de não mais que um minuto, para a internet. Mas quando olhamos o material, Rodrigo percebeu que dava outra coisa. O filme é sobre o meu processo criativo. O processo de criação mudou ou não, na era do download? São coisas interessantes para se refletir.
Você é o primeiro a dizer que possui uma legião de fãs fiéis, mas para quem não conhece a sua história, o nome Lenine pode parecer estranho. Lenine é coisa de comunista, não é?
Pois é, véio, meu pai era comunista e minha mãe católica kardecista. Sou um produto dessa mistura e acho que ela me preparou para a vida, ajuda a explicar até a minha música. Você pode imaginar que a minha casa talvez fosse uma casa de doidos, mas lá dentro vivíamos numa détente. Fui criado indo à missa todos os domingos, até os 8 anos. Depois disso, meu pai assumiu as rédeas. Marx era uma leitura obrigatória em casa. E ele era melômano. Ouvíamos tudo. Glenn Miller, Tchaikovsky, canções napolitanas, folclore russo, marchas alemãs, Chopin.
Não admira, portanto, que, em 1997, você tenha produzido um disco como O Dia em Que Faremos Contato. Essa mistura é algo que está em você desde a infância?
Sim, e que eu fui aprimorando, mas tem origem na minha vida familiar, no sonho de integração do meu pai, que queria um mundo solidário. Dizem que a minha música agrega manifestações brasileiras e de outras partes do mundo. Que o meu som não tem limites. Gosto de acreditar que isso seja verdade. Sou brasileiro, mas também sou do mundo. É curioso como a pan-religiosidade da minha família, crença em Deus de uma parte e no homem, de outro, me preparou para uma visão meio ritualística da arte, da vida.
Na entrevista com o ator Irandhir Santos, de Quincas Berro d”Água e Tropa de Elite 2, ele também falou muito em ritualismo e o cara é do Recife. Isso é coisa de pernambucano?
Talvez seja mesmo. Saí muito cedo daqui, fui para o Rio, mas volto sempre ao Recife, porque é uma cidade muito energética. Não é por acaso que aqui se criou um polo muito rico de musicalidades. Gosto de dizer que tenho 60 mil seguidores fiéis, que veem meus shows, compram meus CDs. Esse público me estimula a criar. Sei que posso fazer não importa o que, mas eles vão conferir. Ouso, me atiro sem paraquedas, mas no fundo não arrisco tanto, porque sei que tenho o anteparo deles.
Você criou uma relação muito forte com a França, por quê?
Rapaz, mentiria se dissesse que não sei, mas é um coisa misteriosa, meio inexplicável. Tenho a alma de viajante. Gosto de viajar, de conhecer. Já disse que o meu disco mais importante talvez tenha sido o Olho de Peixe, porque me mostrou que a música podia me levar a qualquer lugar. O outro me atrai, não me assusta. E o que vejo, ouço, atiça a saudade e faz dialogarem as raízes e o estranho. Por exemplo, o rock. Foi uma das minhas matrizes, mas eu o somei à música de raiz. Dominguinhos é o maior músico brasileiro, uma fonte inesgotável. Na França, eu encontrei o terreno ideal para o cultivo dessas ideias.
De volta: depois das matinês do São Luiz, o que ocorreu?
Véio, descobri um filme que foi um farol. Era muito jovem, mas o deslumbramento que O Boulevard do Crime (de Marcel Carné) me produziu foi algo muito forte. E aquele também é um filme que soma o cinema a formas de teatro e de representação como a pantomima. O Boulevard do Crime foi uma das primeiras experiências genuinamente artísticas que tive. A arte é uma coisa mágica.
Você tem produzido música para cinema, o que é diferente de emplacar faixas de CDs em novelas, por exemplo. Ou não é?
Claro que sim. Fiz a trilha para o Caramuru, de Guel Arraes e Jorge Furtado, e também fiz para o Breu, um espetáculo de dança do grupo Corpo. Foi uma de minhas experiências mais radicais. Foi incrível ver a minha música ganhar forma, em três dimensões. Fiz, para Adriana e João Falcão, a direção musical de Cambaio. Tenho consciência de que a música me leva a todo lugar, e gosto disso.