No final dos anos oitenta, um grupo de pessoas “nervosas”, atraídas pelo desejo de expressão, tomaram de assalto um pequeno palco de um bar nos Arcos da Lapa. Toda semana, por um dia, palco e plateia varavam a noite devorando Música, Poesia, Teatro, e tudo o mais que quisesse aparecer por lá. Nestes encontros, exercitou-se a criação espontânea, a magia do improviso, a experimentação, o descomprometimento com quaisquer regras, o vigor e o rigor da juventude. Este palco aberto chamava-se Falange Canibal, uma zona franca da arte, um território de livre-trânsito para todas as tendências, uma terra de ninguém ocupada por todos. Encruzilhada de caminhos. Ponto de aglutinação.
Foi a memória afetiva, dessas noites de poesia e música, que me levou ao título do CD. Foi uma escolha completamente passional e verdadeira, que cai como uma luva para nomear um trabalho que tem no “ponto de aglutinação” o seu fio condutor. Falange Canibal é o encontro musical de muitos amigos, tendências e nações, é fruto direto do exercício da troca , do tal “livre trânsito”, uma zona franca! Perceber que Falange Canibal poderia ter sido o título de qualquer um dos CDs que já fiz foi quase que instantâneo… É que tem sido uma constante em minha vida, aquele sentimento que norteava as procuras, os desejos e as inquietações daquele grupo de “nervosos”…
Estão sempre presentes nos meus trabalhos, parcerias com Bráulio Tavares, Lula Queiroga, Ivan Santos, Dudu Falcão, não por acaso ativos freqüentadores da antiga “Falange”, e eternos cúmplices da criação, da tiração de onda, do humor. Some-se a estes Sérgio Natureza, Carlos Rennó e Paulo César Pinheiro, e está completa a tribo da autoralidade das canções do Falange Canibal.
As gravações aconteceram no Brasil e nos EUA, durante o segundo semestre de 2001, e contaram com amigos brasileiros (Júnior do Vulgue Tostoi, Marcelo Lobato e Xandão do Rappa, Henrique Portugal e Haroldo Ferreti do Skank, Kassin e Berna, Plínio Gomes, Velha Guarda da Mangueira, o elenco de Cambaio, Frejat, Eumir Deodato, Zé Miguel Wisnik ) e de várias nações ( Alexander Cheparukhin do Farlanders, Ani Difranco, Will e Doug do Living Color, Claude Sicre e Ange B. do Fabulous Trobadors, Regis Gizavo, Steve Turre, Yerba Buena, Andres Levin).
Tom Capone (que junto com Álvaro, mixaram o Cd) e Mauro Manzoli foram os parceiros da pré, da intra e da pós produção, quer dizer, acompanharam o processo todo.
Valeu Tom! Por mais este…
Ê Ô! O vento soprou! Ê Ô! A folha caiu! Ê Ô! Cadê meu amor? Que a noite chegou fazendo frio
Das canções:
Ecos do Ão, com Rennó, uma declaração de amor à Língua Portuguesa e a sua sonoridade ímpar. Nenhuma língua, latina ou não, possui o som do ão. Nem no português de Portugal encontramos esse som anasalado e aberto… A textura de timbres que o Vulgue conseguiu chegar é instigada.
Sonhei, com Ivan e BT, é um 5 com jeitão de 10, portanto tem, lá no fundo, um sentimento binário que torna quase que irreconhecível o compasso quebrado. Nas mãos de Kassin e Berna, a canção ganhou intuição e desceu redondo…
Umbigo, com BT. O texto fala por si, qualquer tentativa de explicar é chover no molhado. Todos que lidam com a exibição, me entenderão. Talvez por causa da minha formação socialista, esta canção funciona como um auto-exorcismo, um mapa para não me permitir o distanciamento das coisas que são realmente importantes. Dois grandes amigos nos ajudaram a dar forma à canção: Eumir Deodato e Ani Difranco.
Lavadeira do Rio, outra com BT, da série de canções de rua tipo levada-e-gogó, dessas que são compostas sem o auxílio luxuoso de instrumentos, música crua. Seguem uma tradição do universo da canção espontânea de bloco: Suvaco, Simpatia, Monobloco, etc… O Henrique e o Haroldo realçaram ainda mais essas características. Um banho de sonoridade Pop.
Encantamento, com o Natureza, fruto direto do arrebatamento que nos causou a descoberta da banda russa “Farlanders”. Foi um encantamento só, desvendar no som vindo de terras tão distantes, coisas tão próximas a nós. Eu vi o Brasil, eu me vi no som dos caras… Aí Maurão comprou a briga, e montou de forma magistral a canção.
Nem o Sol, Nem a Lua, Nem Eu, com Dudu, originalmente composta pra Bethânia, é uma ciranda cyberpunk, que tem a especialíssima participação do Steve e suas divinas conchas, que transportaram a canção até as areias de uma praia remota… em Saturno!
Caribantu, outra com Natureza, outra do tipo rua, meio côco rústico-radical, meio samba- de roda pós naif… Mas é principalmente o encontro de duas gerações, com 40 anos de diferença, o elenco de Cambaio e a velha guarda da Mangueira, nunca vi nada tão parecido…
Quadro Negro, outra com Rennó, segue a linha canção-crônica, um retrato, bastante fiel a meu ver, do mundo de hoje. “O último a sair do breu, acenda a luz…”, é o mote que usamos para falar dos paradoxos, injustiças e contradições que povoam o nosso planeta. A harmonia do Lobatinho no Theremin deu aquele ar de filme noir.
O Silêncio das Estrelas, também com Dudu, originalmente um blues, esta canção se transformou, com as cordas do Glauco e a sanfona do Régis, numa épico-clássica balada existencial… É, das canções que compõem o CD, a mais antiga, e portanto ao meu ver, a que mais se metamorfoseou.
No Pano da Jangada, com Paulinho Pinheiro, é a terceira da seqüência de músicas de rua, deu vontade de radicalizar, joguei areia em todo o estúdio, espalhei microfones pela sala, gravei os grooves com os pés e percussão de boca, e daí pra uma ego-faixa foi um pulo.
Rosebud (O Verbo e a Verba), com Lula, é uma história de amor entre dois personagens muito conhecido de todos nós, “Dolores e Dólares”. Além de uma discreta homenagem ao visionário cidadão Orson. A banda do Andres, o Yerba Buena, foi uma puta descoberta, e tocar com “El Negro”, coração da percussão afro-caribenha, foi um luxo…
O Homem dos Olhos de Raio X, evidentemente o título foi tirado do clássico de Roger Corman do início dos 60. O track foi gravado de primeira, e sem overdubs, e capturou fielmente a levada de som que foi o encontro com (Salve Jorge!) a banda do Zé Pretinho “Liv-ing Color”.
Dito isto, espero que vocês se divirtam ouvindo, assim como nós nos divertimos fazendo, Falange Canibal.
Cheiro
Lenine